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fevereiro de 2012  


Poemas e fotos da
camarada Marília Machado


Convocatória

Poema sobre o dia nacional da consciência negra, o 20 de novembro.

(Marília Machado)

Chega de gritos de dor
e de tanto ranger os dentes.

Chega de gemidos, de lamentos
e de tantos elos de correntes.

Chega de baixar os olhos
diante da discriminação!

Agora é hora do negro.
Hoje é o dia de ser feliz.

Tomemos as rédeas da vida,
segurando-as firmes em nossas mãos!

A exemplo de tantos heróis
que nosso povo gerou,

Sejamos os agentes desta revolução!


Publicamos aqui uma seleção de poemas escritos pela camarada Marília Costa Machado, falecida no dia 15 de fevereiro de 2012, no decorrer de vários anos. (Fotos: Vanguarda Operária)

Quando sou poeta

(Marília Machado)

Quando sou poeta
pairo acima do bem e do mal.
Mas sou tão frágil quando sou mortal...

Quando sou poeta
fico indignada, revoltada!
Quando sou mortal sou lesada...

Quando sou poeta
abomino as injustiças.
Denuncio.

Quando sou mortal
vivo na escravidão.

Poeta, vivo
Mortal, sobrevivo.

Mortal, desfaleço.
Poeta, realizo. 


Poesia retirada do livro REFLEXÃO VERDE AMARELA, editora Kroart, Rio de Janeiro, 1999



Ditadura

Esta frase foi colocada em  um outdoor na avenida principal de São Gonçalo

Não meditas nas duras desditas que me ditas?


Abolição dos escravos?

Em maio de 1888 foi “abolida” a escravidão pela famosa “Lei Áurea”. Ante a generalização de rebeliões de escravos e a criação de quilombos, Brasil foi o último país independente da América a eliminar a escravatura que data das origens do capitalismo. Porém, os ex-escravos não receberam terras para cultivar, e persiste até em nossos dias o trabalho escravizado no Brasil.
 
(Marília Machado)

Sem nenhuma garantia,
Sem emprego ou moradia,
Sem alfabetização.
Isto foi a abolição?

Nada de reforma agrária.
Saúde, muito precária!
Só tinha valor o patrão.
Isto foi a abolição?

A favela aconteceu.
O mendigo apareceu.
Criança sem proteção.
Isto foi abolição?

O povo negro esquecido,
Empobrecido e sofrido
Com a discriminação.
Isto foi abolição?

Passados mais de cem anos
Vivemos ainda os danos
Daquela situação.
Isto foi abolição?

O grande golpe da história
Ficou em nossa memória,
Na vida e no coração.

Isto foi abolição?



Marília (à esquerda) lê uma de suas poesias num debate no sindicato de trabalhadores da previdência
e saúde do estado de Rio de Janeiro (Sindsprev-RJ).

Prelúdio para Jamal

(Marília Machado)

Você é a luta de todos nós:
dos que já se foram
e dos que ainda virão.

A essência da liberdade
buscando a libertação
É quem vive no Brasil
ou em qualquer outra nação.

A dor de quem é escravo
num mundo de tantos senhores,
das vítimas de tantos horrores
no campo, cidade ou favela.

É aquele que escreve a história
com força e convicção.

Um herói sem fantasias
que não serve à alienação,
a voz que não quer calar
diante de tanta opressão,

um desejo de justiça,
um clamor do coração.

Você é um grito na garganta
de cada negro que chora,
de cada humano marcado
pelas torturas do mal.

Você é paz, às vezes guerra.

Você é MUMIA ABU JAMAL

(poema publicado na edição especial do boletim do Sepe-RJ, abril de 2008)
Haiti: Duzentos anos de dor

(Marília Machado)

Mais  de duzentos anos
de dor,  clamor, desalento.
Mais de duzentos anos
de luta, horror  e tormento.

Mas também foram dois séculos
de vitória da resistência,
de superação da existência,
de força e soberania.

A guerra mais implacável,
tão difícil de vencer,
é contra o preconceito
e a cruel burguesia,

que vindo de todas as partes,
exercendo a tirania,
massacra, fere e oprime,
disfarçada de “missão”.

E fingindo que quer paz
pune, do povo, a “ousadia”
de fazer  revolução.

Lá,  a paz se pinta de preto,
da cor de um povo lindo,
que luta e vai conseguir.

E então,  libertará 
o belo  sorriso preto
da  querida infância preta
que vive no Haiti;

a grande alegria preta,
da juventude preta,
que vive no Haiti;

a  felicidade preta,
das  pretas e pretos de garra
que vivem no Haiti.

Quero, que logo aconteça
a nova revolução
reerguendo o Haiti,
pois um pedaço de mim
também sobrevive  ali.


(poema publicado no blog do Sepe-RJ, fevereiro de 2010)

Privatiza, privatiza, privatiza

Este poema foi colocado no caderno de tese do Comitê de Luta Classista no Congresso do Sepe em 2003, onde um grupo de funcionárias e professoras do Ciep Vital Brasil, onde Marília ensinava, fez moção para que o Sepe filiasse e lutasse pelos terceirizados(as).

O texto faz referência alegórica a uma série de privatizações realizadas pelos governos burgueses. Entre elas, em 1998 o último governo de Fernando Henrique Cardoso privatizou a ferrovia, a telefonia e a companhia mineira Vale de Rio Doce. A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), principal produtora do aço, foi privatizada a partir de 1993.

(Marília Machado)

O trem me atropela
E eu não posso correr:
Privatiza, privatiza, privatiza.

Vende a luz, vende a água.
O telefone, a escola:
Privatiza, privatiza, privatiza.

Vende o aço, a saúde,
O minério, a consciência:
Privatiza, privatiza, privatiza.

Vende a honra, vende a paz
Vende o povo, vende tudo.
Privatiza, privatiza, privatiza.

O trem me atropela, mas não vou morrer.
Resisto na luta, vou sobreviver.

 

Marília (segunda da direita) em uma palestra no Rio de Janeiro com presença do sindicalista norte-
americano Jack Heyman (centro) logo do dia 1o. de maio de 2008, quando os portuários do sindicato
ILWU paralisaram todos os portos da Costa Pacífica dos EUA contra a guerra do Iraque e Afeganistão.


Tropeços

(Marília Machado)

Percorrendo as histórias do meu povo,
das mulheres estou a ouvir de novo
os tropeços para esta construção.

Parece incrível que, após tanta batalha,
nem a lei satisfaz nossos anseios,
nem a arte segue a revolução.


Criança da rua

(Marília Machado)

Criança que vive na rua.
cheira cola, bate carteira,

criança de pele escura,
sem escola nem bandeira,

criança esperta,
que brinca com a vida,

anda em bando,
entra no crime

e morre bem cedo.

Um dia, criança,
essa vida ainda muda

e você se liberta do preconceito,
da tortura e do medo.


Creio, logo luto

(Marília Machado)

Se eu não acreditasse
que é preciso estar na luta,
 questionar, me rebelar...

Se eu não acreditasse
que é possível construir a utopia,
trocar o conforto por um sonho,
amar o diferente...

Ah! Seria tão fácil se eu não fosse crente!

Poderia ir plantar batatas,
catar coquinhos,
ou, quem sabe,
puxar saco só um pouquinho
de quem quer me pisar...

Ser uma negra de alma branca,
dizer amém ao patrão,
ser capacho, objeto de consumo
e, tranquilamente, me desrespeitar.

Crescimento

(Marília Machado)

Antes, eu olhava apenas
o que estava ao redor
e queria salvar o mundo.

Depois, desviei o olhar
e fiz uma longa viagem
nas profundezas de mim.

Visitei os meus recantos,
vasculhei todos os cantos
que minh’alma permitiu.

Fiquei muitas vezes surpresa,
tristezas, as tive tantas!

Outras tantas vezes, sorri.

Agora o momento é chegado
de estender o meu olhar
pelas paisagens da vida.

Aguçar os meus sentidos,
assumir o meu partido
nos pleitos do coração.

Perceber o grande enredo,
desvendar os meus segredos,
fazer a revolução.

Esta poesia está no livro O Encanto das Bruxas, em parceria com sua amiga Carmen Lucia Oliveira Corrêa, editora Litteris, RJ, 1995



Marília (à esquerda) em 2007, no momento de um plebiscito dentro do Sepe-RJ sobre a proposta de sair
da Central Única dos Trabalhadores e ingressar à nova central Conlutas. O Comitê de Luta Classista fez
campanha por permanecer dentro da CUT, a maior central sindical do país, e lutar contra o frente-
populismo que é caraterística comum de todas as centrais.


Do Ventre da Terra

[Em outubro de 2010, 33 mineiros chilenos, após de permanecer mais de dois meses enclausurados num canal subterrâneo colapsado da mina, foram resgatados em meio de  propaganda nacionalista e autojustificativa do governo direitista de Sebastián Piñera.]

(Marília Machado)

Ressurgiu então a vida,
apesar das traições,
da eterna luta de classes
e das discriminações!

Apesar de uma jazida
que estava condenada,
apesar de um sistema
que o povo maltratava,
apesar das condições
que a mente apavorava.

Nas asas da doce Fênix
ressurgiu a vida teimosa
dos trabalhadores chilenos

Do ventre da terra mãe,
grávida de tanta esperança,
renasceu vitoriosa,
a vida que quase apagou.

Não havia equipamento
para tal situação.
Esquema de salvamento,
ninguém pensou nisso não.

Mas aconteceu o acidente
que obrigou de repente,
lançar mão do improviso:

Com hino e bandeira ao vento,
parabéns e presidente
subindo de cotação,
o socorro foi promovido.

E mais uma vez o que era
para ser bem discutido,
virou razão de ufanismo,
de muito patriotismo,
excesso de nacionalismo,
mantendo o trabalhador
eufórico e bem iludido.

Auto estima

(Marília Machado)

Quero ser porta-voz de uma raça
que é nobre, astuciosa e inteligente.

Quero dizer ao mundo inteiro
que negro também faz bonito,
que dominamos todas as artes.

Quero fazer o discurso dos fortes,
daqueles que resistiram,
que lutaram e não se entregaram.

Quero falar que nossa coragem
construiu este país,
que nossos braços, literalmente,
embalaram esta nação,
que os seios de nossas mulheres
alimentaram este povo.

Quero estar tão orgulhosa de ser negra,
a ponto de não me deixar vencer
pelas armas da opressão:

Racismo, preconceito e discriminação.

Criança da rua

(Marília Machado)

Criança que vive na rua.
cheira cola, bate carteira,

criança de pele escura,
sem escola nem bandeira,

criança esperta,
que brinca com a vida,

anda em bando,
entra no crime

e morre bem cedo.

Um dia, criança,
essa vida ainda muda

e você se liberta do preconceito,
da tortura e do medo.

Educando

(Marília Machado)

Profissionais da Educação,
Dizendo não ao patrão.

Ato público inflamado,
Discursos revoltados
Com o quase estado de coma.

Zé Brasil passa e fica admirado
Com a força dessa gente que não cansa.

Em seu peito massacrado,
Nasce uma nova esperança.

Estende as mãos trêmulas,
Faz a cara mais bonita que consegue

E pede àquela professora mais valente:
“Você me dá um diploma?”

Ela move os lábios atônita
Mas só o silêncio responde.

Festa macabra

Comentário sobre o dia 19 de abril, O “Dia do índio”.

(Marília Machado)

Pega o índio!
Assa vivo!

Esfola o índio,
Espancando sem parar!

Fuzila o índio!
Coloca num saco com a prostituta
E extermina os dois!

Comemora a hipocrisia e o desgoverno.

Afinal, hoje é o dia do índio.

 
Marília (portando faixa, esquerda) num protesto do Sepe no Rio de Janeiro, 14 de agosto de 2009. À direita num
jantar com camaradas do CLC e da LQB.

  

Marília com camaradas em 2005.


E-mail:  lqb1996@yahoo.com.br e internationalistgroup@msn.com

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